Antes de começar as filmagens para o
DOC-TCHECOV, eu fui em busca de adaptações cinematográficas das obras do autor
russo e comecei a vê-las pela “Pequena Lili”, feita em 2003 por Claude Miller.
Portanto, vamos às considerações.
O filme é uma livre adaptação de “A
Gaivota”, uma comédia em quatro atos publicada originalmente em 1896. Nela, acompanhamos
uma família em uma propriedade rural que aguarda a apresentação da peça escrita
por Trepliov e que será encenada por Nina, uma aspirante à atriz por quem ele é
apaixonado. Logo de início, vemos que a encenação desagrada Arkádina, mãe de
Trepliov, e isto arruína toda a noite trazendo aborrecimento ao filho e certo
ar desagradável entre os convivas. Com isto, Tchecov nos mostra que Trepliov
vive angustiado, porque deseja Nina. Mas esta, por sua vez, vive angustiada
porque deseja Trigorin, um escritor amigo da família. Desta forma, acompanhamos
a desolação íntima daquelas pessoas que vivem incomodadas com o presente; mas,
embora, presas a ele, não conseguem criar e experimentar melhores
possibilidades para seus futuros. Ao fim da peça, Nina, que fugiu com Trigorin
para realizar seu sonho de ser atriz na capital, acaba retornando amargurada
para o interior. Por sua vez, Trepliov, o aspirante a escritor, sufocado pela
aura da mãe e pelas oportunidades perdidas, comete suicídio.
Muito bem, Claude Miller manteve no
filme certos signos característicos da peça de Tchecov. A gaivota, sendo o
símbolo da liberdade, é vista logo entre os créditos iniciais do filme. Vale
destacar que “Liberdade” também é o nome da propriedade rural onde se passa a
história. Além disso, vemos a fazenda delineada por um lago, o que define, de
certa forma, tanto o isolamento físico quanto o imaginário dessas personagens ambíguas
que buscam realizar seus desejos.
E desejo aqui será um elemento forte
no filme de Miller, afinal o primeiro plano do filme é um belo nu de Lili (Ludivine
Sagnier) se preparando para fazer amor com seu namorado Julien (Robinson
Stévenin) nas relvas da fazenda. Feito isto, Julien prepara a exibição para a
família de seu curta-metragem protagonizado por Lili. Todos reunidos, mas o
filme desagrada à sua mãe, atriz, e a condescendência de seu pai, cineasta
profissional, o ofende. A partir deste momento de tensão, Lili se afasta cada
vez mais de Julien e se deixa encantar por seu pai, Brice. Esta clara
referência à Lolita, de Nabokov, conduz toda a narrativa do filme e acaba dando
tons ao humor das personagens durante aquela estadia.
Mesmo sendo uma relação impossível,
já que Brice é casado e pai de Julien, Lili foge com seu sogro iludida com o
sonho de ser estrela de cinema. Com o tempo, Julien, que fora abandonado, se
casa com Jeanne-Marie (Julie Depardieu) e se torna um grande cineasta adaptando
esta própria história ao cinema e então, uma pequena vingança: Julien acrescenta
ao script da personagem de seu pai um segredo que seria somente dele, mas que
Lili havia descoberto. Desta maneira, Claude Miller adota a metalinguagem como
forma de superação daqueles conflitos familiares, já que convida seus próprios
parentes para encenar seus próprios papeis em seu longa-metragem de estreia.
Assim, a adaptação de Claude Miller
trouxe leveza e erotismo à Gaivota ao construir o filme em torno de uma Lolita,
a Lili, que atualiza o imaginário de Tchecov ao mesmo tempo em que nos mostra
como a criação artística é feita de biografia, desejo e sublimação.
Abraços fortes!
Fábio
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